
Catarina Ribeiro é docente na Faculdade de Educação e Psicologia, Psicóloga Clínica/Saúde e Perita em Avaliação Psicológica Forense. Tem dedicado a sua carreira à área da Clínica e da Justiça e do Comportamento Desviante. Porquê a Psicologia? A resposta está nas “pessoas”: “Tenho uma enorme curiosidade pelo ser humano.” Nesta entrevista, fala-nos dos desafios da sua profissão, da importância da empatia e da tolerância, e explica porque é que o descanso é tão fundamental.
É especialista na área da Justiça e do Comportamento Desviante. O que caracteriza esta área da Psicologia?
A Psicologia da Justiça e do Comportamento Desviante é uma área aplicada da Psicologia num contexto muito específico: o da compreensão e interpretação do comportamento desviante e da sua relação com a lei. É uma área fascinante porque exige que tenhamos conhecimentos muito sólidos de Psicologia para podermos contribuir para decisões legais mais justas. O Direito regula o comportamento através da lei. A Psicologia ajuda o Direito a compreender esse comportamento. Não se trata de justificar, mas de auxiliar o sistema de justiça a compreender melhor as motivações, dinâmicas e limites das pessoas, de forma a garantir julgamentos mais informados. Por exemplo, se alguém comete um crime, mas tem uma psicopatologia que o impede de compreender as suas ações, o julgamento não pode ser igual ao de alguém que age com plena consciência. A Psicologia tem um papel importante ao trazer esse enquadramento científico do comportamento humano.
É Perita em Avaliação Forense. Em que consiste a função?
Sou Perita Forense no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, que é onde se realizam estas avaliações. A avaliação forense cruza a Psicologia Clínica com a Psicologia da justiça. As perícias psicológicas são meios de prova importantes no sistema legal. As pessoas são avaliadas com base no tipo de processo em que estão envolvidas. Pode tratar-se de alguém que cometeu um crime, de uma vítima, de uma criança envolvida num processo de regulação das responsabilidades parentais, ou de promoção e proteção, por exemplo. Avaliamos, muito frequentemente, dinâmicas familiares, manipulação, vinculação aos progenitores, competências parentais, o que é, especialmente, importante em casos de negligência e maus-tratos, elevado conflito parental, entre muitas outras situações. Também avaliamos o impacto de acidentes, danos neuropsicológicos e a sua implicação no dia a dia das pessoas. Tudo isso faz parte do trabalho forense que realizo. É um trabalho muito variado, porque, embora existam padrões de comportamento, cada pessoa tem características únicas. O contexto em que tudo acontece também é distinto.
Também tem atividade clínica …
Sim. Sempre tive dois grandes interesses: a avaliação forense e a clínica. Gosto especialmente de intervir em situações de elevada adversidade e transições de vida que são sentidas com sofrimento. Falo de estados de depressão, ansiedade, angústia, dificuldades de adaptação, luto.
Perante tantas situações difíceis que acompanha no seu dia-a-dia, como consegue manter o equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal? Como evita levar consigo o peso de todas essas histórias?
Sim, tenho uma atividade profissional com uma carga emocionalmente pesada. Trabalho com muitas pessoas e, normalmente, em situações emocionalmente complexas. Lido com isso com empatia, nunca com indiferença. Os psicólogos não devem dessensibilizar-se perante o sofrimento humano. Devem, sim, saber distanciar-se e diferenciar contextos. As ferramentas que desenvolvemos, o conhecimento científico, a formação que vamos adquirindo ajudam-nos a olhar para as situações com um olhar clínico, e não apenas pessoal. Competências como a escuta, a comunicação, a empatia e capacidade de transmitir segurança são essenciais.
Como é que lida com a frustração?
Tenho uma profissão que exige uma grande capacidade de lidar com a frustração, porque mudar comportamentos é difícil e nem sempre conseguimos transformar a vida das pessoas para que fiquem mais funcionais. Eu mesma faço psicoterapia há muitos anos, ou seja, tenho o meu próprio espaço psicoterapêutico, tenho um grupo de supervisão onde partilho dúvidas técnicas e questões pessoais. Isto é fundamental nesta atividade, continuar a estudar, ter supervisão contínua. É fundamental não trabalharmos sozinhos, não absorvermos tudo sozinhos. E, claro, procuro contextos gratificantes na vida pessoal que me ajudam a aliviar algum peso emocional das pessoas e das histórias que acompanho profissionalmente.
Em Psicologia, há casos perdidos ou qualquer situação tem alguma margem de melhoria, mesmo que pequena?
Existem situações com grande resistência à mudança. É importante sabermos reconhecer isso. São exemplo disso, casos com psicopatologia grave, perturbações de personalidade graves, comportamentos antissociais, entre outras. Contudo, há sempre uma margem, nem que seja para diminuir danos. Nem todos têm potencial para grandes mudanças, é importante perceber o grau de flexibilidade, e ajustar expectativas.
É docente da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica, desde 2007. Que desafios lhe tem colocado a nova geração de alunos?
O maior desafio atualmente é lidar com a baixa tolerância à frustração, elevada ansiedade por parte dos alunos. Há uma enorme necessidade de gratificação imediata.
Como é que se ensina empatia aos alunos?
Não é fácil … A empatia está muito ligada à estrutura de personalidade, aos significados individuais, à história de vida de cada pessoa, à forma como foram acolhidos os seus estados emocionais. Existe a empatia afetiva do eu sinto o que o outro está a sentir” e a empatia cognitiva do “eu compreendo o que o outro está a sentir”. A empatia cognitiva é mais fácil de trabalhar, por exemplo através do contacto com situações reais, exemplos práticos, estimular a reflexão pessoal, pedir que se coloquem no lugar do outro. Até nas interações em sala de aula, entre colegas uso exemplos para despertar a consciência empática.
E no caso da tolerância, como se promove uma verdadeira capacidade de lidar com a diferença?
A tolerância exige antes de tudo o reconhecimento da liberdade. Só em sociedades livres existe tolerância. E é importante distinguir entre tolerância e permissividade. Há comportamentos que não podem ser tolerados, por violarem direitos fundamentais. Dentro do que é aceitável, precisamos de flexibilidade para lidar com a diferença, para nos ajustarmos a nós próprios e aos outros. Isso exige saber gerir relações sem nos destruirmos e sem ferirmos o outro. Só existe tolerância porque existem limites. Essa é a base da convivência saudável entre as pessoas.
Como olha para a inteligência artificial?
A inteligência artificial trouxe novos desafios. Não a demonizo, estamos a tentar integrá-la, mas muda a forma como ensinamos e avaliamos. Exige, por isso, adaptação. Mas a minha missão, enquanto professora, mantém-se, apesar dos novos desafios que vão surgindo. O meu maior esforço é despertar a curiosidade para que os alunos queiram aprender mais do que aquilo que será avaliado, saberem usar a IA como um aliado para o seu desenvolvimento e não como um fator bloqueador.
O que a trouxe para a Psicologia foram as pessoas. Continuam a ser as pessoas que a mantêm fascinada por esta área?
Sem dúvida. Tenho uma enorme curiosidade pelo ser humano. Mesmo que, às vezes, traga surpresas desagradáveis, estou disposta a correr esse risco. A curiosidade tem esse lado imprevisível. Quando somos curiosos estamos dispostos a descobrir qualquer realidade, ainda que seja difícil. Tenho a vida profissional que quero ter. Trabalho numa universidade onde me sinto realizada, gosto mesmo muito de dar aulas, de estudar, e tenho a minha prática clínica e forense. A minha carreira assenta nestas três áreas que me apaixonam muito, e que se completam entre si.
O que gosta de fazer nos tempos livres?
Vou a concertos sempre que posso, gosto muito de ler, de estar com a minha cadela, fazer sestas, estar com os meus amigos e família, preciso muito de estar em contacto com a natureza, adoro fazer caminhadas. São coisas mesmo simples, mas que me fazem bem. Também preciso muito de momentos sozinha…o silêncio é importante.
Num mundo com cada vez mais estímulos, qual a importância dos tempos verdadeiramente livres?
Tem toda a importância, porque o descanso é essencial, até para podermos ajudar os outros. É-nos cada vez mais difícil descansar. Temos dificuldade em estar sem fazer nada, mas é tão importante. É fundamental estarmos sem estímulos à nossa volta, porque é nesse tempo que damos espaço ao aborrecimento, ao vazio, e é muitas vezes desse aborrecimento que surge a criatividade e que surge a oportunidade para nos encontrarmos connosco mesmos, com os nossos próprios fracassos e limitações, mas também com novas descobertas
É por isso que o silêncio é tão importante?
Sim, o silêncio quer sempre dizer alguma coisa. Tem de haver espaço para o silêncio. Por exemplo, os silêncios são muito importantes na psicoterapia. Porque a seguir ao silêncio, vem sempre alguma coisa. Temos de saber estar no silêncio, respeitar os silêncios, e saber o seu significado.
Pessoas em Destaque é uma rubrica de entrevistas da Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional do Porto.